Imagem: Indianarae na rua Nossa Senhora de Copacabana durante a marcha das Vadias de 2012. Fonte: Iconoclastia Incendiária ¹
Por: Guilherme Altmayer
Uma reflexão sobre o trabalho de Indianarae Siqueira, que cunhou o termo transvestigênere, e como sua ação estético-política de enfrentamento direto, que consiste em expor os seios em locais públicos para ser detida pela polícia, revela como não somos todos iguais perante a lei e as consequências violentas na invisibilização de pessoas trans. A partir destes enfrentamentos performáticos Indianarae configura contracondutas, contrassexualidades que propõem modos de vida outros, e expõem as falhas dos dispositivos que insistem em controlar os corpos, especialmente os não normativos.
Indianarae Siqueira mostra como, a partir de uma ação estético-política tão simples quanto colocar os peitos para fora em lugares públicos, ela estremece as bases e normas que influenciam nas regras jurídicas para homens e mulheres, supostamente iguais perante a lei. A ação revela as injustiças do tratamento desigual dado às identidades binárias de gênero e também às pessoas que transitam entre eles, as pessoas transvestigênere, termo por ela cunhado. Pensando a partir do conceito de contrassexualidade de Paul B. Preciado (2002), Indianarae está identificando espaços errôneos, falhas na estrutura e reforçando o poder do desvio, da deriva frente a um sistema heterocentrado. As reflexões políticas e artísticas aqui presentes são originadas dos relatos e conversas com Indianarae, que aconteceram em 2015 durante a pesquisa Tropicuir: (Re)existências politicas nas ações performáticas de corpos transviados no Rio de Janeiro ² que se dedicou a investigar ações estético-políticas transviadas ³ de quatro artistas-performers-ativistas no Rio de Janeiro.
Do poder que é exercido em nosso corpo, diz Michel Foucault, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra este poder” (FOUCAULT, 1993, p.146). Podemos entender o corpo como uma ferramenta que, ao tomar consciência dos efeitos dos dispositivos que o atravessam e o constituem – família, escola, governos, medicina, psicologia, instâncias jurídicas e religião –, torna-se capaz de se apropriar e manipular estes mecanismos para se converter em uma máquina produtora de novos sentidos, novos territórios de ocupação contranormativos e insubordinados como a ação executada por Indianarae. Ao reconhecer a atuação destes dispositivos como mecanismos de produção de verdades – identitárias e socialmente segregadoras – abrimos o caminho para que, através da crítica, possam ser revelados e desconstruídos. A arte tem papel fundamental neste processo de criação de novas formas de saberes do corpo, ao contar, nas ações performáticas a partir dele geradas, com um canal de expressão polimorfo para existências ambíguas, indefinições e questionamentos.
“Pessoa normal de peito e pau”. Assim descreve a si mesma Indianarae Siqueira, uma pessoa que diz não ter mais interesse em se definir, se classificar como mulher ou homem, e para isso trabalha para que identidades de gênero e sexo não sejam demandadas em locais como um simples documento de identidade, documento que para pessoas trans é fonte de violência pois não representa o nome social por elas definido. Ao se definir como pessoa de peito e pau, Indianarae assume uma postura que rejeita a identidade a partir de traços biológicos, a partir da maneira como interpreta seu próprio corpo em contraponto às formas como ele é visto, ou se torna invisível legalmente. Indianarae quer se colocar fora do plano de inteligibilidade das definições usuais de gênero, se distanciando criticamente das normas e articulando um lugar próprio, ou um não lugar, a partir de um estado de indefinição (BUTLER, 2004).
A ação performática que conduz a presente reflexão teve início na Marcha das Vadias de 2012, evento o qual Indianarae é uma das organizadoras. Ela relata que, durante a marcha, algumas meninas se mostravam apreensivas com a possibilidade de serem presas por atentado ao pudor ao expor seus seios. Indianarae resolve, então, convocar uma comissão de pessoas trans, liderada por ela, para que colocassem os peitos para fora. Por serem oficialmente homens, a polícia não poderia fazer nada contra elas. Em um determinado momento, a marcha passou em frente a uma igreja em que acontecia uma missa de crisma para crianças e algumas meninas invadiram a igreja com os peitos de fora.
“Foi muito engraçado. Na verdade, fui levada para igreja. Tenho os vídeos que provam isso. Saiu na imprensa e fui reconhecida como a mulher que tirou os peitos para fora e entrou na igreja. Mas foi a Polícia Militar que me pediu ajuda e me levou para dentro da igreja. Fui levada para dentro da igreja com os peitos de fora para resolver a questão. Aí fui fazendo sinal para as pessoas saírem e no final fomos parar todas na delegacia.”
Foi a partir de então que Indianarae começou a fazer sua ação performática de colocar os peitos para fora em público, forma que encontrou para provocar uma reação da justiça às questões de desigualdade de gênero e direitos legais das pessoas trans. Foram ao todo cinco ações executadas em diferentes locais e intensidades. Sobre a ideia de colocar os peitos para fora, ela conta que foi uma iniciativa de sua amiga Jovana Baby, uma das precursoras do movimento trans e então presidente da ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados, ainda em 1995. “Ela me disse que mostrar os peitos era sinônimo de liberdade”, conta ela. A partir do acontecido na Marcha das Vadias, Indianarae começou a executar a ação de colocar os peitos para fora em outros locais públicos, como o próprio prédio onde morava. Quando via um homem entrar sem camisa ela decidia tirar a dela também. Começou então a receber cartas do síndico porque a cena era filmada pelas câmeras de segurança. Um dia recebeu uma ligação do advogado do condomínio e disse ao telefone:
“Não sei se você me conhece, mas meu nome é Sergio Alves Siqueira, e legalmente eu sou um homem. Vários homens entram aqui sem camisa, o próprio porteiro anda sem camisa no prédio – então o mesmo direito que ele tem eu também tenho. O advogado sabe que em uma ação judicial o caso seria derrubado em qualquer tribunal.”
Na manhã de um outro dia, Indianarae saiu com os peitos de fora pelas ruas de Copacabana, até que a polícia começou a segui-la e ameaçou prendê-la por causa do topless. Ela contestava dizendo que teriam que prender todos os homens que estão sem camisa porque era legalmente homem. Alguns viam como uma forma de protesto, enquanto outros se aproximavam dela de uma maneira violenta. “Então eu acionava as advogadas que se referiam a mim no masculino. Eles (os policiais) me chamavam de ela. As advogadas questionavam se quando ‘ele’ fosse preso seria levado para um presídio masculino ou feminino”. Em uma das ocasiões o delegado queria que Indianarae assinasse um documento por desacato a autoridade. Ela se negou a assinar e ficou detida. As advogadas juntaram dinheiro e pagaram sua fiança. Tudo isso aconteceu em 2012, pouco antes da marcha das vadias de 2013. Algum tempo depois, Indianarae foi chamada para uma pré-audiência ⁴ na justiça, com o seguinte argumento em mãos:
“Se eles me condenassem, na realidade eles estariam me reconhecendo como pessoa trans. Estariam reconhecendo que meus documentos não são válidos. Estariam abrindo um precedente para que todas as pessoas trans fossem respeitadas por sua identidade de gênero e não pelo gênero, pelo sexo declarado nos documentos. Mas ao mesmo tempo eu estaria sendo condenada enquanto feminina, enquanto mulher. Então eles estariam dizendo claramente que homens e mulheres não são iguais perante a lei. Que os homens teriam um direito e as mulheres não. Então me condenariam como mulher e abririam um precedente para as pessoas trans. Se eles me absolvessem, eles estariam dizendo que, sim, legalmente sou um homem e então tenho direito. Mas outra vez seria absolvida enquanto homem. Se fosse mulher seria condenada. Então outra vez eles estariam abrindo um precedente que homens e mulheres não são iguais perante a lei. A justiça não quer reconhecer que no Brasil exista esta diferença. Não abrindo um precedente eles voltam também a reconhecer que homens e mulheres não são iguais perante a lei.”
Com esta ação, Indianarae mostra como a justiça não está disposta a admitir a existência de desigualdades no tratamento entre homens e mulheres, e coloca à prova as normas que definem, perante a justiça, o que configura uma mulher ou um homem. “Um tribunal não pode reconhecer claramente que a justiça discrimina o gênero feminino. Então eles entram nesta sinuca de bico. Arquivam ou adiam, e agora tem uma terceira ação sendo julgada”, diz ela.
Esta terceira ação aconteceu na Lapa, e Indianarae conta que estava acompanhada de um menino trans: “neste momento fica bem claro que um corpo feminino é o corpo criminalizado e o corpo masculino não, mesmo sendo um corpo trans.” Indianarae e seu amigo são levados para a delegacia. Seu amigo também não carregava documentos atestando que oficialmente é uma mulher. Na delegacia ele diz: “mas ela pode (colocar os peitos para fora) porque legalmente ela é homem. Eu aqui não posso porque legalmente sou mulher”. O menino trans também tira a camisa, mas como já havia feito a cirurgia para masculinização de seu peitoral, tomava hormônios masculinos e tinha barba, já possuía uma figura masculina e diz “eu legalmente sou mulher. Eu é que não posso tirar a roupa. É uma mulher tirando a roupa na delegacia”. O policial fala simplesmente que seu caso é diferente.
A quarta vez que executou a ação foi ao sair da Central do Brasil em direção à Lapa. Já no Campo de Santana ela conta que foi detida, algemada e levada para a delegacia, onde ficou onze horas detida. Indianarae conta que o policial estava disposto a liberá-la se ela cobrisse novamente os peitos, mas ela se negava. Indagada pelas razões pelas quais um homem, ao ser detido, só poder sair da delegacia com os peitos cobertos, o policial respondeu que era porque Indianarae tinha um “fenótipo” ⁵ feminino.
Uma quinta ação ainda foi executada em uma noite na Lapa. Ela conta que os policiais informaram a outros policiais que era normal encontrá-la com os peitos de fora, mas que deveriam pedir para ela não tirar toda a roupa. Indianarae conta que ao ouvir isso, tirou imediatamente toda sua roupa. Ela conta sorrindo:
A primeira coisa que não se deve falar para Indianarae é não pode. Aí eu tirei a roupa toda. Eles disseram que não iriam me prender. Eu estava sob efeito de álcool já não lembro mais, mas meus amigos me falam que eu tirei a roupa deitei no capô do carro e gritava para os policiais me prenderem.
Ela acabou sendo presa, e conta que os policiais queriam enquadrá-la por desacato a autoridade, mas a delegada negou e pediu que não a levassem mais para a delegacia. “Aí fui devolvida pra Lapa e falei: fui recusada até pela polícia”. A mensagem estava dada e a ação parecia chegar a um impasse, a uma exaustão legal. A justiça já não estaria mais disposta a levar este caso adiante sem que ao final fosse aberto um precedente como já citado por Indianarae anteriormente. Indianarae decidiu, então, que vai entrar com uma ação contra o estado: “agora quero que o estado julgue a questão e que nesta ação seja retirado de todos os meus documentos as designações de gênero e sexo”.
“O problema na realidade são os mamilos” diz Indianarae, que fala que se vestir um sutiã que cubra somente os mamilos, mesmo que o resto dos seios fiquem expostos, poderá andar livremente pela rua. “O peito só está realmente desnudo no momento em que expõe os mamilos. O problema está em os homens considerarem esta zona erótica” diz ela. Fica claro que o problema está em quem e para quem são definidas as normas legais e sociais que delimitam o que constitui um homem ou uma mulher e os direitos de cada um.
As provocações promovidas por Indianarae têm um objetivo claro, o de revelar como estas abordagens se entrecruzam e confundem como as instituições e dispositivos diferenciam estes comportamentos e liberdades concedidas a partir dos binômios de gênero homem/mulher. Além de mostrar como pessoas que não se encaixam, não se identificam com este binômio de gênero permanecem invisíveis frente a direitos legais, sociais e médicos. Judith Butler (2004), em Undoing Gender, defende que os aparatos ou dispositivos que constroem as normas binárias de gênero podem ser os mesmos a trabalhar para desfazer estas definições dada a incompletude e fragilidade das suas construções. Esta parece ser a intenção de Indianarae.
Na violência de um confronto direto com autoridades policiais como via de acesso a processos judiciais, Indianarae está perturbando, expondo as brechas de um discurso normativo que pretende ser determinante. Um sistema frágil que permite que Indianarae, ao embaralhar seus códigos, confunda as regras, promova ambiguidade, confusão, para tornar evidente a arbitrariedade com que são determinadas estas divisões, seus limites, suas separações (LOURO, 2008). Vale retomar aqui o conceito de contraconduta de Foucault (2008b), em seu trabalho Segurança, Território e População, para compreendermos a ação estético-política de Indianarae como um ato que configura o momento em que rompe com todos os vínculos de obediência que ela pode ter com o estado, com as condutas estabelecidas, ao ampliar a discussão para uma ideia de direitos essenciais e fundamentais, de uma lei própria, uma lei das próprias exigências, demandadas por um corpo polimorfo, uma lei das próprias necessidades fundamentais que devem substituir as regras de obediência e a partir de então criar novas formas de conduta possíveis.
Foucault (1998) fala de como dispositivos de controle, que atuam a partir de um conjunto de regras, práticas, discursos e normas, foram se intensificando a partir do final do século XIX para produzir comportamentos familiares e sexuais normatizados, produzir a separação entre normal e anormal, aceito e proibido, homossexual e heterossexual, além das noções que definem um homem e uma mulher. O dispositivo é uma forma de operar esses discursos e práticas, muitas vezes heterogêneas entre si, para produzir normatização, o modo de funcionamento da regra e da norma, que não tem o mesmo estatuto nem o mesmo funcionamento que a instância jurídica da lei, mas convive e mantêm certas relações com esta. A lei é “objetiva”, guarda uma certa relação de exterioridade ao indivíduo, enquanto que a norma é aquilo que “se materializa” no sujeito, na produção das subjetividades; a norma só pode ser “encarnada”, performada, e é isso que constitui a peculiaridade da sua força. À lei se obedece ou não; à norma se adere, repete, reforça através de hábitos, condutas, práticas, formas de afetividade, corporeidades.
É a partir da patologização de “perversões”, julgadas como tal pelos saberes e valores dominantes na época, que o sexo, por exemplo, se converte em sexualidade e se torna um objeto de estudo. Os comportamentos são produzidos a partir de uma cientifização, de uma medicalização, e terapias são criadas, condenações e penalizações ganham novos objetos, formas e sentidos. No Brasil, desde 1984 a homossexualidade já não é mais considerada uma patologia (TREVISAN, 1986), porém a transgeneridade, ainda presente no CID10, segue sendo considerada uma patologia passível de tratamento, configurando o que define Butler como uma norma explícita (BUTLER, 2004). Por mais problemático e doloroso que seja, este processo de patologização garante a obrigatoriedade do SUS de oferecer as operações de redesignação de sexo, por ser considerado um problema de saúde pública.
O que Indianarae busca é não ser identificada, não ser classificada, nem como homem, nem como mulher. Uma não submissão a uma identidade binária: “Não quero ter a marcação homem ou mulher nos meus documentos. Apenas quero que seja incluído o nome Indianarae, sem designações”. Já não lhe interessa mais existir no sistema binário homem/mulher por entender o caráter repressivo e desigual desta hierarquização e por sofrer, no próprio corpo, as consequências violentas ao assumir uma das duas identidades de gênero, principalmente a da mulher. Indianarae quer agora que seus dois nomes sejam registrados no seu documento de identidade: Indianarae Sérgio Alves Siqueira. É claro que mesmo buscando uma neutralidade de gênero, Indianarae não estará deixando de trabalhar, de se relacionar com a norma binária, pois até mesmo sua abjuração, que a coloca em uma posição fora das normas de inteligibilidade social, não elimina a relação com esta norma (BUTLER, 2004). Ainda assim, o que Indianarae propõe é que esta norma seja reconfigurada e inclua outras formas de existência, contemple outros corpos, que possam ser simplesmente designados como pessoas.
Assim, a ativista entende estar em um processo de redução dos efeitos dos dispositivos que controlam as políticas de identidade. “Eu posso ser simplesmente Indianarae Sergio Alves Siqueira, uma pessoa de peito e pau, simples assim. Indianarae tem peito, Sergio tem pau. Já que eles querem marcação, que seja dessa maneira”. Com respeito a estes entraves legislativos a que Indianarae se propõe a confundir para provocar uma mudança, Judith Butler (2004) fala da importância de cessar processos que supostamente legislam para todos, sem entender que nem todos se encaixam e são atendidos por estas leis, da mesma maneira que a autora entende que certas prescrições tornam a vida inviável para alguns. A crítica às normas, diz a autora, deve acontecer dentro de um contexto em que se reconhece a existência de múltiplas formas de vida, e a partir dessa multiplicidade buscar formas de maximizar as possibilidades de viver as vidas “desajustadas” (BUTLER, 2004).
Ao entendermos a categoria de gênero como uma categoria histórica, podemos compreender estas definições como uma configuração cultural dos corpos que estaria em constante reconfiguração, e que mesmo as identidades definidas pela anatomia e pelo sexo são incluídas nesta configuração cultural (BUTLER, 2004). Butler (2004) diz não existir uma identidade de gênero por trás da expressão de gênero, e que a identidade é constituída de forma performativa pelas próprias expressões de gêneros. Berenice Bento (2006), em A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual, fala da necessidade de se pensar nessa construção dos corpos-sexuados como produto de tecnologias biopolíticas, como um complexo sistema de estruturas reguladoras que controlam as relações entre os corpos, as subjetividades e os desejos.
A biopolítica a que se refere Bento parte de um conceito desenvolvido por Michel Foucault em História da Sexualidade – A Vontade de Saber,onde mostra como nossos corpos são atravessados por relações de poder e dispositivos de controle, que criam subjetivações a partir destes atravessamentos, para então nos tornarmos, nós mesmos, máquinas produtoras e reprodutoras destas relações (FOUCAULT, 1998). Ou seja, segundo o autor, o controle dos corpos já não se dá de fora para dentro, mas se encontra internalizado, incorporado.
Carregamos então um conjunto de definições, verdades construídas dentro do contexto histórico em que estamos inseridos, um conjunto de atravessamentos escritos nos corpos e que por via destes mesmos corpos são proliferados e normalizados. Não se trata mais de um poder repressivo externo a nós, mas de nós mesmos como máquinas reprodutoras destas instâncias de poder, a partir das subjetivações por ele, e por nós mesmos, geradas (FOUCAULT, 1998). Para reforçar esta ideia de como não apenas não existe um lugar fora da norma, como tampouco um sujeito anterior a ela, Butler convoca duas advertências importantes a partir do trabalho de Foucault:
“1. O poder regulatório não atua em um sujeito preexistente mas também forma e molda este sujeito. E mais, toda forma de poder jurídico tem seu efeito produtivo.
2. Tornar-se sujeito a uma regulação é também ser por ela assujeitado (…). Este segundo ponto segue o primeiro à medida que os discursos regulatórios que formam as questões de gênero são exatamente os que demandam e induzem o sujeito em questão” (BUTLER, 2004, p.41).
Na opinião de Indianarae, a ideia de redesignar o sexo se trata de um ajuste a um binarismo que ela parece entender hoje como uma forma de submissão às hierarquias estabelecidas por estas construções. Mesmo sabendo que algumas pessoas ainda têm necessidade desta definição identitária para se reconhecerem como um outro, diferente daquela definição que lhes foi imposta: “as pessoas devem ter a aparência que desejam ter livremente. A genitália que bem entenderem”. Ela defende um existir singularizado que transita por denominações, como já fazem algumas pessoas, que decidem por uma aparência andrógina a partir do que vestem e impossibilitam definições. Uma convocação a outras formas não colonizadas de existir onde binarismos de gênero não estariam presentes, ou não seriam base de definição de comportamentos sociais. Seguindo esta mesma linha, Butler (2004) nos diz que termos como masculino e feminino são cambiáveis, pois existe toda uma história social por trás deles, e suas diferentes definições estão sujeitas a fronteiras geopolíticas.
Invoco a palavra de Hija de Perra, artista ativista chilena que se dedicou a criticar as formas históricas de entender as sexualidades e suas normatizações a partir de lógicas herdadas do processo de colonização, e mostra como são reconfiguráveis ao longo da história. Hija de Perra questionou, através de sua poética abjeta e monstruosa, as práticas políticas de normatização das sexualidades no Chile (SUTHERLAND, 2014). No texto Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma, Hija de Perra diz:
“Os conquistadores olharam aos homens indígenas como seres selvagens afeminados por conta da sua ornamentação e às mulheres como fogosas por terem parte dos corpos desnudos. Nossos ancestrais foram vestidos com roupas estranhas à sua cultura original, cortaram os seus cabelos para diferenciá-los entre homens e mulheres e não permitiram, tomando-as por aberração, todas as práticas intersexuais que produziam alterações à moralista mente espanhola. Hoje ainda estamos expostos a parâmetros herdados por estes violentos conquistadores através de uma valoração social, moralista e religiosa, que mudou para o bem e para o mal, ordenando essas estúpidas formas de pensamento em nossa vulnerável e adormecida sócio cultura latino-americana” (PERRA, 2014, p.2).
“Hoje quando falam ‘você é uma mulher’, eu digo não. Eu transformei meu corpo para o que é padronizado como mulher, e aprendi que isso é ser mulher, ter um corpo feminino”, conta Indianarae. Porém, Indianarae entende viver em uma realidade social onde subjetividades constroem e moldam o corpo de acordo com o que é esperado dele, mesmo que seja uma imagem que ela um dia desejou para si, e diz: “mas hoje me interessa ser uma pessoa que tem peitos, uma pessoa que tem pau. A culpa não é minha se eu tenho que me definir como mulher”.
No livro Revolução Molecular, Félix Guattari (1981) fala de uma emergência em acabar com noções generalizantes como a de mulher, a do homossexual, porque segundo o autor nada é tão simples, argumentando que, ao reduzir existências a categorias, estaríamos realizando uma operação que garante um poder sobre elas e a partir delas. “Não podemos qualificar um amor, por exemplo, de modo unívoco” (GUATTARI, 1981, p.36). Indianarae, em sua ação estético-política, luta para que esta complexidade apontada por Guattari seja refletida não só no âmbito social, mas também nos dispositivos legais. Butler (2004) defende que este contestar autoridades simbólicas, como mulher, homem, homossexual, não se dá necessariamente em um movimento de retorno ao ego ou a noções liberais clássicas de liberdade, mas sim para insistir que as normas e seu caráter temporal estão sempre abertas para deslocamentos e subversões a partir de suas próprias estruturas. Ao defender a ideia de gênero como uma norma e não um modelo a ser seguido, Butler (2004) insiste em identificar a noção de gênero como uma forma de poder social que produz um campo de inteligibilidade para os sujeitos, um aparato onde o binarismo de gênero é instituído.
A insistência demonstrada por Indianarae nas cinco tentativas, cinco ações performáticas que executou nas ruas do Rio de Janeiro demonstra a urgência das questões levantadas por ela durante nossa conversa, uma urgência que diz respeito a sua própria (re)existência e a de muitas outras pessoas trans. O que é reivindicado aqui e poderia servir de objetivo é a vida, suas necessidades fundamentais, a essência concreta das pessoas, a realização de virtudes, o corpo que se rebela contra o sistema que o controla (FOUCAULT, 1998).
Todo corpo é político. A arte expressa através dos corpos, externaliza potências políticas, trabalha na ressignificação de comportamentos, na geração de novos saberes do corpo, e se converte em instrumento de guerrilha, em estratégia de defesa e resistência aos dispositivos de controle que nos atravessam. Giorgio Agamben, no trabalho Art, Inactivity, Politics, entende a arte como sendo um instrumento inerentemente político, porque diz ser “uma atividade que torna inativos, e contempla, os hábitos sensoriais e os hábitos gestuais dos seres humanos, e, ao fazê-lo, os abre para um novo uso potencial” (AGAMBEN, 2008, p.204). O performer mexicano Guillermo Gómez-Peña (2005) entende o corpo como um território ocupado, onde o objetivo maior da ação performática é o de descolonizar o próprio corpo e tornar estes mecanismos de descolonização aparentes como inspiração para que outros corpos também o façam.
A partir de sua ação, Indianarae provoca estados de suspensão momentâneos abrindo espaço para reflexões sobre formações, modos de vida, que de outra forma poderiam não ser percebidos. Seu próprio corpo é uma ferramenta potente de (re)existência para produzir distorções nos códigos de significação dominantes, trabalhando pelas bordas culturais e margens sociais para incomodar os poderes estabelecidos. Cito aqui a formulação de Foucault sobre a ideia de dissidência com relação às políticas de governança pastorais, um conceito que me parece exprimir a intenção de Indianarae:
“Não queremos esse sistema, em que até os que comandam são obrigados a obedecer pelo terror. Não queremos essa pastoral da obediência. Não queremos essa verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de observação, de exame perpétuo que nos julga o tempo todo, nos diz o que somos no fundo de nós mesmos, sadios ou doentes, loucos ou não, etc. Podemos dizer portanto [que] essa palavra – dissidência – abrange de fato uma luta contra esses efeitos pastorais.” (FOUCAULT, 2008, p.265)
Indianarae não apenas rejeita definições e hierarquizações de gênero, mas reivindica um direito a ser monstro, uma existência outra que quer se desfazer destas formas de poder sobre seu corpo. E é com a seguinte citação extraída de uma publicação em seu perfil no Facebook que terminamos o presente texto:
“Indianare-se / Indianarae Siqueira. Ao transicionar os humanos me privaram de minha humanidade e me relegaram ao lugar de monstro. Foi o melhor que poderia ter me acontecido. De pequeno príncipe que eu deveria ser e teria sido, não me transformei na raposa fofa que precisava ser cativada e aprisionada de novo, tampouco fui a rosa solitária que esperava a volta do pequeno. Fui a hiena, monstro. Esperei que os leões matassem o príncipe e depois das rosas subjugadas e as raposas cativadas ri altooooo e me alimentei das carniças desses seres. Por isso luto todos os dias pra me livrar dos resquícios de humanidade que ainda restam em mim e reivindico meu direito a ser monstro.” ⁶
1. Disponível em: http://iconoclastia.org/2013/06/10/Indianarae-siqueira-a-trans-que-pode-mudar-a-lei-brasileira Acessado em 17 março 2016.
2. Para mais ver: http://www.academia.edu
3. Me aproprio aqui do termo “transviado” usado por Berenice Bento para designar estudos/ativismos transviados, e que se aproxima do significado do termo “queer”, tornando-o inteligível no contexto brasileiro. Uso o termo para me referir ao grupo de bichas, sapatas e trans. No dicionário, o termo transviado tem o seguinte significado: s.m. Desviado; aquele que se transviou; quem se afastou dos bons costumes. adj. Desencaminhado; que se perdeu do caminho; que se transviou; que está perdido. Que se opõe aos padrões comportamentais preestabelecidos ou vigentes. Figurado. Vagabundo; que vive a vagar sem rumo certo. (Etm. Part. de transviar) Para mais, ver: http://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/download/61/pdf.
4. A ida à justiça foi filmada e pode ser assistida aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Bew-QGZJXDg
5. Segundo o dicionário de língua portuguesa Dicio, “fenótipo” é definido por: s.m. Genético. Reunião das características particulares ao indivíduo que podem ser visíveis ou detectáveis; manifestação perceptível do genótipo. Genética. Conjunto das particularidades que caracterizam uma bactéria ou um vírus. (Etm. fen(o) + tipo)
6. Texto publicado na rede social Facebook: https://www.facebook.com/indi.siqueira/photos/a.420518144799666.1073741828.419264891591658/434035543447926/?type=3&theater Acesso em 10 de out. 2015
AGAMBEN, Giorgio. Art, Inactivity, Politics. In: BACKSTEIN, Joseph; BIRNBAUM, Daniel; WALLENSTEIN, Sven-Olov (Eds.). Thinking Worlds: The Moscow Conference on Philosophy, Politics, and Art. Berlin: Sternberg Press, 2008.
BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
________________. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________________. História da Sexualidade vol 1 – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
________________. Por uma vida não fascista. Coletivo Sabotagem, 2004.
________________. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
GOMEZ-PEÑA, Guillermo. Ethno-Techno. Writings on Performance, Activism and Pedagogy. New York: Routledge, 2005.
GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo; Brasiliense. 1981.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
PERRA, Hija de. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Revista Periódicus 2a edição novembro 2014 – abril 2015. Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/download/12896/9215> Acesso em 10 de dez. 2015.
PRECIADO, Paul B. Manifesto Contra-sexual. Madrid: Editorial Opera Prima, 2002.
SUTHERLAND, Juan Pablo. Réquiem Bizarro. Página 12, Chile, 5 set. 2014. Disponível em <http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/soy/1-3603-2014-09-05.html> Acesso em 21 out. 2014.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Editora Max Limonad, 1986.
Guilherme Altmayer
Uma reflexão sobre o trabalho de Indianarae Siqueira, que cunhou o termo transvestigênere, e como sua ação estético-política de enfrentamento direto, que consiste em expor os seios em locais públicos para ser detida pela polícia, revela como não somos todos iguais perante a lei e as consequências violentas na invisibilização de pessoas trans. A partir destes enfrentamentos performáticos Indianarae configura contracondutas, contrassexualidades que propõem modos de vida outros, e expõem as falhas dos dispositivos que insistem em controlar os corpos, especialmente os não normativos.
Imagem: Indianarae na rua Nossa Senhora de Copacabana durante a marcha das Vadias de 2012. Fonte: Iconoclastia Incendiária[3]
Indianarae Siqueira mostra como, a partir de uma ação estético-política tão simples quanto colocar os peitos para fora em lugares públicos, ela estremece as bases e normas que influenciam nas regras jurídicas para homens e mulheres, supostamente iguais perante a lei. A ação revela as injustiças do tratamento desigual dado às identidades binárias de gênero e também às pessoas que transitam entre eles, as pessoas transvestigênere, termo por ela cunhado. Pensando a partir do conceito de contrassexualidade de Paul B. Preciado (2002), Indianarae está identificando espaços errôneos, falhas na estrutura e reforçando o poder do desvio, da deriva frente a um sistema heterocentrado. As reflexões políticas e artísticas aqui presentes são originadas dos relatos e conversas com Indianarae, que aconteceram em 2015 durante a pesquisa Tropicuir: (Re)existências politicas nas ações performáticas de corpos transviados no Rio de Janeiro[1] que se dedicou a investigar ações estético-políticas transviadas[2] de quatro artistas-performers-ativistas no Rio de Janeiro.
Do poder que é exercido em nosso corpo, diz Michel Foucault, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra este poder” (FOUCAULT, 1993, p.146). Podemos entender o corpo como uma ferramenta que, ao tomar consciência dos efeitos dos dispositivos que o atravessam e o constituem – família, escola, governos, medicina, psicologia, instâncias jurídicas e religião –, torna-se capaz de se apropriar e manipular estes mecanismos para se converter em uma máquina produtora de novos sentidos, novos territórios de ocupação contranormativos e insubordinados como a ação executada por Indianarae. Ao reconhecer a atuação destes dispositivos como mecanismos de produção de verdades – identitárias e socialmente segregadoras – abrimos o caminho para que, através da crítica, possam ser revelados e desconstruídos. A arte tem papel fundamental neste processo de criação de novas formas de saberes do corpo, ao contar, nas ações performáticas a partir dele geradas, com um canal de expressão polimorfo para existências ambíguas, indefinições e questionamentos.
“Pessoa normal de peito e pau”. Assim descreve a si mesma Indianarae Siqueira, uma pessoa que diz não ter mais interesse em se definir, se classificar como mulher ou homem, e para isso trabalha para que identidades de gênero e sexo não sejam demandadas em locais como um simples documento de identidade, documento que para pessoas trans é fonte de violência pois não representa o nome social por elas definido. Ao se definir como pessoa de peito e pau, Indianarae assume uma postura que rejeita a identidade a partir de traços biológicos, a partir da maneira como interpreta seu próprio corpo em contraponto às formas como ele é visto, ou se torna invisível legalmente. Indianarae quer se colocar fora do plano de inteligibilidade das definições usuais de gênero, se distanciando criticamente das normas e articulando um lugar próprio, ou um não lugar, a partir de um estado de indefinição (BUTLER, 2004).
A ação performática que conduz a presente reflexão teve início na Marcha das Vadias de 2012, evento o qual Indianarae é uma das organizadoras. Ela relata que, durante a marcha, algumas meninas se mostravam apreensivas com a possibilidade de serem presas por atentado ao pudor ao expor seus seios. Indianarae resolve, então, convocar uma comissão de pessoas trans, liderada por ela, para que colocassem os peitos para fora. Por serem oficialmente homens, a polícia não poderia fazer nada contra elas. Em um determinado momento, a marcha passou em frente a uma igreja em que acontecia uma missa de crisma para crianças e algumas meninas invadiram a igreja com os peitos de fora.
Foi muito engraçado. Na verdade, fui levada para igreja. Tenho os vídeos que provam isso. Saiu na imprensa e fui reconhecida como a mulher que tirou os peitos para fora e entrou na igreja. Mas foi a Polícia Militar que me pediu ajuda e me levou para dentro da igreja. Fui levada para dentro da igreja com os peitos de fora para resolver a questão. Aí fui fazendo sinal para as pessoas saírem e no final fomos parar todas na delegacia.
Foi a partir de então que Indianarae começou a fazer sua ação performática de colocar os peitos para fora em público, forma que encontrou para provocar uma reação da justiça às questões de desigualdade de gênero e direitos legais das pessoas trans. Foram ao todo cinco ações executadas em diferentes locais e intensidades. Sobre a ideia de colocar os peitos para fora, ela conta que foi uma iniciativa de sua amiga Jovana Baby, uma das precursoras do movimento trans e então presidente da ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados, ainda em 1995. “Ela me disse que mostrar os peitos era sinônimo de liberdade”, conta ela. A partir do acontecido na Marcha das Vadias, Indianarae começou a executar a ação de colocar os peitos para fora em outros locais públicos, como o próprio prédio onde morava. Quando via um homem entrar sem camisa ela decidia tirar a dela também. Começou então a receber cartas do síndico porque a cena era filmada pelas câmeras de segurança. Um dia recebeu uma ligação do advogado do condomínio e disse ao telefone:
Não sei se você me conhece, mas meu nome é Sergio Alves Siqueira, e legalmente eu sou um homem. Vários homens entram aqui sem camisa, o próprio porteiro anda sem camisa no prédio – então o mesmo direito que ele tem eu também tenho. O advogado sabe que em uma ação judicial o caso seria derrubado em qualquer tribunal.
Na manhã de um outro dia, Indianarae saiu com os peitos de fora pelas ruas de Copacabana, até que a polícia começou a segui-la e ameaçou prendê-la por causa do topless. Ela contestava dizendo que teriam que prender todos os homens que estão sem camisa porque era legalmente homem. Alguns viam como uma forma de protesto, enquanto outros se aproximavam dela de uma maneira violenta. “Então eu acionava as advogadas que se referiam a mim no masculino. Eles (os policiais) me chamavam de ela. As advogadas questionavam se quando ‘ele’ fosse preso seria levado para um presídio masculino ou feminino”. Em uma das ocasiões o delegado queria que Indianarae assinasse um documento por desacato a autoridade. Ela se negou a assinar e ficou detida. As advogadas juntaram dinheiro e pagaram sua fiança. Tudo isso aconteceu em 2012, pouco antes da marcha das vadias de 2013. Algum tempo depois, Indianarae foi chamada para uma pré-audiência[4] na justiça, com o seguinte argumento em mãos:
Se eles me condenassem, na realidade eles estariam me reconhecendo como pessoa trans. Estariam reconhecendo que meus documentos não são válidos. Estariam abrindo um precedente para que todas as pessoas trans fossem respeitadas por sua identidade de gênero e não pelo gênero, pelo sexo declarado nos documentos. Mas ao mesmo tempo eu estaria sendo condenada enquanto feminina, enquanto mulher. Então eles estariam dizendo claramente que homens e mulheres não são iguais perante a lei. Que os homens teriam um direito e as mulheres não. Então me condenariam como mulher e abririam um precedente para as pessoas trans. Se eles me absolvessem, eles estariam dizendo que, sim, legalmente sou um homem e então tenho direito. Mas outra vez seria absolvida enquanto homem. Se fosse mulher seria condenada. Então outra vez eles estariam abrindo um precedente que homens e mulheres não são iguais perante a lei. A justiça não quer reconhecer que no Brasil exista esta diferença. Não abrindo um precedente eles voltam também a reconhecer que homens e mulheres não são iguais perante a lei.
Com esta ação, Indianarae mostra como a justiça não está disposta a admitir a existência de desigualdades no tratamento entre homens e mulheres, e coloca à prova as normas que definem, perante a justiça, o que configura uma mulher ou um homem. “Um tribunal não pode reconhecer claramente que a justiça discrimina o gênero feminino. Então eles entram nesta sinuca de bico. Arquivam ou adiam, e agora tem uma terceira ação sendo julgada”, diz ela.
Esta terceira ação aconteceu na Lapa, e Indianarae conta que estava acompanhada de um menino trans: “neste momento fica bem claro que um corpo feminino é o corpo criminalizado e o corpo masculino não, mesmo sendo um corpo trans.” Indianarae e seu amigo são levados para a delegacia. Seu amigo também não carregava documentos atestando que oficialmente é uma mulher. Na delegacia ele diz: “mas ela pode (colocar os peitos para fora) porque legalmente ela é homem. Eu aqui não posso porque legalmente sou mulher”. O menino trans também tira a camisa, mas como já havia feito a cirurgia para masculinização de seu peitoral, tomava hormônios masculinos e tinha barba, já possuía uma figura masculina e diz “eu legalmente sou mulher. Eu é que não posso tirar a roupa. É uma mulher tirando a roupa na delegacia”. O policial fala simplesmente que seu caso é diferente.
A quarta vez que executou a ação foi ao sair da Central do Brasil em direção à Lapa. Já no Campo de Santana ela conta que foi detida, algemada e levada para a delegacia, onde ficou onze horas detida. Indianarae conta que o policial estava disposto a liberá-la se ela cobrisse novamente os peitos, mas ela se negava. Indagada pelas razões pelas quais um homem, ao ser detido, só poder sair da delegacia com os peitos cobertos, o policial respondeu que era porque Indianarae tinha um “fenótipo”[5] feminino.
Uma quinta ação ainda foi executada em uma noite na Lapa. Ela conta que os policiais informaram a outros policiais que era normal encontrá-la com os peitos de fora, mas que deveriam pedir para ela não tirar toda a roupa. Indianarae conta que ao ouvir isso, tirou imediatamente toda sua roupa. Ela conta sorrindo:
A primeira coisa que não se deve falar para Indianarae é não pode. Aí eu tirei a roupa toda. Eles disseram que não iriam me prender. Eu estava sob efeito de álcool já não lembro mais, mas meus amigos me falam que eu tirei a roupa deitei no capô do carro e gritava para os policiais me prenderem.
Ela acabou sendo presa, e conta que os policiais queriam enquadrá-la por desacato a autoridade, mas a delegada negou e pediu que não a levassem mais para a delegacia. “Aí fui devolvida pra Lapa e falei: fui recusada até pela polícia”. A mensagem estava dada e a ação parecia chegar a um impasse, a uma exaustão legal. A justiça já não estaria mais disposta a levar este caso adiante sem que ao final fosse aberto um precedente como já citado por Indianarae anteriormente. Indianarae decidiu, então, que vai entrar com uma ação contra o estado: “agora quero que o estado julgue a questão e que nesta ação seja retirado de todos os meus documentos as designações de gênero e sexo”.
“O problema na realidade são os mamilos” diz Indianarae, que fala que se vestir um sutiã que cubra somente os mamilos, mesmo que o resto dos seios fiquem expostos, poderá andar livremente pela rua. “O peito só está realmente desnudo no momento em que expõe os mamilos. O problema está em os homens considerarem esta zona erótica” diz ela. Fica claro que o problema está em quem e para quem são definidas as normas legais e sociais que delimitam o que constitui um homem ou uma mulher e os direitos de cada um.
As provocações promovidas por Indianarae têm um objetivo claro, o de revelar como estas abordagens se entrecruzam e confundem como as instituições e dispositivos diferenciam estes comportamentos e liberdades concedidas a partir dos binômios de gênero homem/mulher. Além de mostrar como pessoas que não se encaixam, não se identificam com este binômio de gênero permanecem invisíveis frente a direitos legais, sociais e médicos. Judith Butler (2004), em Undoing Gender, defende que os aparatos ou dispositivos que constroem as normas binárias de gênero podem ser os mesmos a trabalhar para desfazer estas definições dada a incompletude e fragilidade das suas construções. Esta parece ser a intenção de Indianarae.
Na violência de um confronto direto com autoridades policiais como via de acesso a processos judiciais, Indianarae está perturbando, expondo as brechas de um discurso normativo que pretende ser determinante. Um sistema frágil que permite que Indianarae, ao embaralhar seus códigos, confunda as regras, promova ambiguidade, confusão, para tornar evidente a arbitrariedade com que são determinadas estas divisões, seus limites, suas separações (LOURO, 2008). Vale retomar aqui o conceito de contraconduta de Foucault (2008b), em seu trabalho Segurança, Território e População, para compreendermos a ação estético-política de Indianarae como um ato que configura o momento em que rompe com todos os vínculos de obediência que ela pode ter com o estado, com as condutas estabelecidas, ao ampliar a discussão para uma ideia de direitos essenciais e fundamentais, de uma lei própria, uma lei das próprias exigências, demandadas por um corpo polimorfo, uma lei das próprias necessidades fundamentais que devem substituir as regras de obediência e a partir de então criar novas formas de conduta possíveis.
Foucault (1998) fala de como dispositivos de controle, que atuam a partir de um conjunto de regras, práticas, discursos e normas, foram se intensificando a partir do final do século XIX para produzir comportamentos familiares e sexuais normatizados, produzir a separação entre normal e anormal, aceito e proibido, homossexual e heterossexual, além das noções que definem um homem e uma mulher. O dispositivo é uma forma de operar esses discursos e práticas, muitas vezes heterogêneas entre si, para produzir normatização, o modo de funcionamento da regra e da norma, que não tem o mesmo estatuto nem o mesmo funcionamento que a instância jurídica da lei, mas convive e mantêm certas relações com esta. A lei é “objetiva”, guarda uma certa relação de exterioridade ao indivíduo, enquanto que a norma é aquilo que “se materializa” no sujeito, na produção das subjetividades; a norma só pode ser “encarnada”, performada, e é isso que constitui a peculiaridade da sua força. À lei se obedece ou não; à norma se adere, repete, reforça através de hábitos, condutas, práticas, formas de afetividade, corporeidades.
É a partir da patologização de “perversões”, julgadas como tal pelos saberes e valores dominantes na época, que o sexo, por exemplo, se converte em sexualidade e se torna um objeto de estudo. Os comportamentos são produzidos a partir de uma cientifização, de uma medicalização, e terapias são criadas, condenações e penalizações ganham novos objetos, formas e sentidos. No Brasil, desde 1984 a homossexualidade já não é mais considerada uma patologia (TREVISAN, 1986), porém a transgeneridade, ainda presente no CID10, segue sendo considerada uma patologia passível de tratamento, configurando o que define Butler como uma norma explícita (BUTLER, 2004). Por mais problemático e doloroso que seja, este processo de patologização garante a obrigatoriedade do SUS de oferecer as operações de redesignação de sexo, por ser considerado um problema de saúde pública.
O que Indianarae busca é não ser identificada, não ser classificada, nem como homem, nem como mulher. Uma não submissão a uma identidade binária: “Não quero ter a marcação homem ou mulher nos meus documentos. Apenas quero que seja incluído o nome Indianarae, sem designações”. Já não lhe interessa mais existir no sistema binário homem/mulher por entender o caráter repressivo e desigual desta hierarquização e por sofrer, no próprio corpo, as consequências violentas ao assumir uma das duas identidades de gênero, principalmente a da mulher. Indianarae quer agora que seus dois nomes sejam registrados no seu documento de identidade: Indianarae Sérgio Alves Siqueira. É claro que mesmo buscando uma neutralidade de gênero, Indianarae não estará deixando de trabalhar, de se relacionar com a norma binária, pois até mesmo sua abjuração, que a coloca em uma posição fora das normas de inteligibilidade social, não elimina a relação com esta norma (BUTLER, 2004). Ainda assim, o que Indianarae propõe é que esta norma seja reconfigurada e inclua outras formas de existência, contemple outros corpos, que possam ser simplesmente designados como pessoas.
Assim, a ativista entende estar em um processo de redução dos efeitos dos dispositivos que controlam as políticas de identidade. “Eu posso ser simplesmente Indianarae Sergio Alves Siqueira, uma pessoa de peito e pau, simples assim. Indianarae tem peito, Sergio tem pau. Já que eles querem marcação, que seja dessa maneira”. Com respeito a estes entraves legislativos a que Indianarae se propõe a confundir para provocar uma mudança, Judith Butler (2004) fala da importância de cessar processos que supostamente legislam para todos, sem entender que nem todos se encaixam e são atendidos por estas leis, da mesma maneira que a autora entende que certas prescrições tornam a vida inviável para alguns. A crítica às normas, diz a autora, deve acontecer dentro de um contexto em que se reconhece a existência de múltiplas formas de vida, e a partir dessa multiplicidade buscar formas de maximizar as possibilidades de viver as vidas “desajustadas” (BUTLER, 2004).
Ao entendermos a categoria de gênero como uma categoria histórica, podemos compreender estas definições como uma configuração cultural dos corpos que estaria em constante reconfiguração, e que mesmo as identidades definidas pela anatomia e pelo sexo são incluídas nesta configuração cultural (BUTLER, 2004). Butler (2004) diz não existir uma identidade de gênero por trás da expressão de gênero, e que a identidade é constituída de forma performativa pelas próprias expressões de gêneros. Berenice Bento (2006), em A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual, fala da necessidade de se pensar nessa construção dos corpos-sexuados como produto de tecnologias biopolíticas, como um complexo sistema de estruturas reguladoras que controlam as relações entre os corpos, as subjetividades e os desejos.
A biopolítica a que se refere Bento parte de um conceito desenvolvido por Michel Foucault em História da Sexualidade – A Vontade de Saber,onde mostra como nossos corpos são atravessados por relações de poder e dispositivos de controle, que criam subjetivações a partir destes atravessamentos, para então nos tornarmos, nós mesmos, máquinas produtoras e reprodutoras destas relações (FOUCAULT, 1998). Ou seja, segundo o autor, o controle dos corpos já não se dá de fora para dentro, mas se encontra internalizado, incorporado.
Carregamos então um conjunto de definições, verdades construídas dentro do contexto histórico em que estamos inseridos, um conjunto de atravessamentos escritos nos corpos e que por via destes mesmos corpos são proliferados e normalizados. Não se trata mais de um poder repressivo externo a nós, mas de nós mesmos como máquinas reprodutoras destas instâncias de poder, a partir das subjetivações por ele, e por nós mesmos, geradas (FOUCAULT, 1998). Para reforçar esta ideia de como não apenas não existe um lugar fora da norma, como tampouco um sujeito anterior a ela, Butler convoca duas advertências importantes a partir do trabalho de Foucault:
“1. O poder regulatório não atua em um sujeito preexistente mas também forma e molda este sujeito. E mais, toda forma de poder jurídico tem seu efeito produtivo. 2. Tornar-se sujeito a uma regulação é também ser por ela assujeitado (…). Este segundo ponto segue o primeiro à medida que os discursos regulatórios que formam as questões de gênero são exatamente os que demandam e induzem o sujeito em questão” (BUTLER, 2004, p.41).
Na opinião de Indianarae, a ideia de redesignar o sexo se trata de um ajuste a um binarismo que ela parece entender hoje como uma forma de submissão às hierarquias estabelecidas por estas construções. Mesmo sabendo que algumas pessoas ainda têm necessidade desta definição identitária para se reconhecerem como um outro, diferente daquela definição que lhes foi imposta: “as pessoas devem ter a aparência que desejam ter livremente. A genitália que bem entenderem”. Ela defende um existir singularizado que transita por denominações, como já fazem algumas pessoas, que decidem por uma aparência andrógina a partir do que vestem e impossibilitam definições. Uma convocação a outras formas não colonizadas de existir onde binarismos de gênero não estariam presentes, ou não seriam base de definição de comportamentos sociais. Seguindo esta mesma linha, Butler (2004) nos diz que termos como masculino e feminino são cambiáveis, pois existe toda uma história social por trás deles, e suas diferentes definições estão sujeitas a fronteiras geopolíticas.
Invoco a palavra de Hija de Perra, artista ativista chilena que se dedicou a criticar as formas históricas de entender as sexualidades e suas normatizações a partir de lógicas herdadas do processo de colonização, e mostra como são reconfiguráveis ao longo da história. Hija de Perra questionou, através de sua poética abjeta e monstruosa, as práticas políticas de normatização das sexualidades no Chile (SUTHERLAND, 2014). No texto Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma, Hija de Perra diz:
Os conquistadores olharam aos homens indígenas como seres selvagens afeminados por conta da sua ornamentação e às mulheres como fogosas por terem parte dos corpos desnudos. Nossos ancestrais foram vestidos com roupas estranhas à sua cultura original, cortaram os seus cabelos para diferenciá-los entre homens e mulheres e não permitiram, tomando-as por aberração, todas as práticas intersexuais que produziam alterações à moralista mente espanhola. Hoje ainda estamos expostos a parâmetros herdados por estes violentos conquistadores através de uma valoração social, moralista e religiosa, que mudou para o bem e para o mal, ordenando essas estúpidas formas de pensamento em nossa vulnerável e adormecida sócio cultura latino-americana (PERRA, 2014, p.2).
“Hoje quando falam ‘você é uma mulher’, eu digo não. Eu transformei meu corpo para o que é padronizado como mulher, e aprendi que isso é ser mulher, ter um corpo feminino”, conta Indianarae. Porém, Indianarae entende viver em uma realidade social onde subjetividades constroem e moldam o corpo de acordo com o que é esperado dele, mesmo que seja uma imagem que ela um dia desejou para si, e diz: “mas hoje me interessa ser uma pessoa que tem peitos, uma pessoa que tem pau. A culpa não é minha se eu tenho que me definir como mulher”.
No livro Revolução Molecular, Félix Guattari (1981) fala de uma emergência em acabar com noções generalizantes como a de mulher, a do homossexual, porque segundo o autor nada é tão simples, argumentando que, ao reduzir existências a categorias, estaríamos realizando uma operação que garante um poder sobre elas e a partir delas. “Não podemos qualificar um amor, por exemplo, de modo unívoco” (GUATTARI, 1981, p.36). Indianarae, em sua ação estético-política, luta para que esta complexidade apontada por Guattari seja refletida não só no âmbito social, mas também nos dispositivos legais. Butler (2004) defende que este contestar autoridades simbólicas, como mulher, homem, homossexual, não se dá necessariamente em um movimento de retorno ao ego ou a noções liberais clássicas de liberdade, mas sim para insistir que as normas e seu caráter temporal estão sempre abertas para deslocamentos e subversões a partir de suas próprias estruturas. Ao defender a ideia de gênero como uma norma e não um modelo a ser seguido, Butler (2004) insiste em identificar a noção de gênero como uma forma de poder social que produz um campo de inteligibilidade para os sujeitos, um aparato onde o binarismo de gênero é instituído.
A insistência demonstrada por Indianarae nas cinco tentativas, cinco ações performáticas que executou nas ruas do Rio de Janeiro demonstra a urgência das questões levantadas por ela durante nossa conversa, uma urgência que diz respeito a sua própria (re)existência e a de muitas outras pessoas trans. O que é reivindicado aqui e poderia servir de objetivo é a vida, suas necessidades fundamentais, a essência concreta das pessoas, a realização de virtudes, o corpo que se rebela contra o sistema que o controla (FOUCAULT, 1998).
Todo corpo é político. A arte expressa através dos corpos, externaliza potências políticas, trabalha na ressignificação de comportamentos, na geração de novos saberes do corpo, e se converte em instrumento de guerrilha, em estratégia de defesa e resistência aos dispositivos de controle que nos atravessam. Giorgio Agamben, no trabalho Art, Inactivity, Politics, entende a arte como sendo um instrumento inerentemente político, porque diz ser “uma atividade que torna inativos, e contempla, os hábitos sensoriais e os hábitos gestuais dos seres humanos, e, ao fazê-lo, os abre para um novo uso potencial” (AGAMBEN, 2008, p.204). O performer mexicano Guillermo Gómez-Peña (2005) entende o corpo como um território ocupado, onde o objetivo maior da ação performática é o de descolonizar o próprio corpo e tornar estes mecanismos de descolonização aparentes como inspiração para que outros corpos também o façam.
A partir de sua ação, Indianarae provoca estados de suspensão momentâneos abrindo espaço para reflexões sobre formações, modos de vida, que de outra forma poderiam não ser percebidos. Seu próprio corpo é uma ferramenta potente de (re)existência para produzir distorções nos códigos de significação dominantes, trabalhando pelas bordas culturais e margens sociais para incomodar os poderes estabelecidos. Cito aqui a formulação de Foucault sobre a ideia de dissidência com relação às políticas de governança pastorais, um conceito que me parece exprimir a intenção de Indianarae:
“Não queremos esse sistema, em que até os que comandam são obrigados a obedecer pelo terror. Não queremos essa pastoral da obediência. Não queremos essa verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de observação, de exame perpétuo que nos julga o tempo todo, nos diz o que somos no fundo de nós mesmos, sadios ou doentes, loucos ou não, etc. Podemos dizer portanto [que] essa palavra – dissidência – abrange de fato uma luta contra esses efeitos pastorais.” (FOUCAULT, 2008, p.265)
Indianarae não apenas rejeita definições e hierarquizações de gênero, mas reivindica um direito a ser monstro, uma existência outra que quer se desfazer destas formas de poder sobre seu corpo. E é com a seguinte citação extraída de uma publicação em seu perfil no Facebook que terminamos o presente texto:
“Indianare-se / Indianarae Siqueira. Ao transicionar os humanos me privaram de minha humanidade e me relegaram ao lugar de monstro. Foi o melhor que poderia ter me acontecido. De pequeno príncipe que eu deveria ser e teria sido, não me transformei na raposa fofa que precisava ser cativada e aprisionada de novo, tampouco fui a rosa solitária que esperava a volta do pequeno. Fui a hiena, monstro. Esperei que os leões matassem o príncipe e depois das rosas subjugadas e as raposas cativadas ri altooooo e me alimentei das carniças desses seres. Por isso luto todos os dias pra me livrar dos resquícios de humanidade que ainda restam em mim e reivindico meu direito a ser monstro.”[6]
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Art, Inactivity, Politics. In: BACKSTEIN, Joseph; BIRNBAUM, Daniel; WALLENSTEIN, Sven-Olov (Eds.). Thinking Worlds: The Moscow Conference on Philosophy, Politics, and Art. Berlin: Sternberg Press, 2008.
BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
________________. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________________. História da Sexualidade vol 1 – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
________________. Por uma vida não fascista. Coletivo Sabotagem, 2004.
________________. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
GOMEZ-PEÑA, Guillermo. Ethno-Techno. Writings on Performance, Activism and Pedagogy. New York: Routledge, 2005.
GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo; Brasiliense. 1981.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
PERRA, Hija de. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Revista Periódicus 2a edição novembro 2014 – abril 2015. Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/download/12896/9215> Acesso em 10 de dez. 2015.
PRECIADO, Paul B. Manifesto Contra-sexual. Madrid: Editorial Opera Prima, 2002.
SUTHERLAND, Juan Pablo. Réquiem Bizarro. Página 12, Chile, 5 set. 2014. Disponível em <http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/soy/1-3603-2014-09-05.html> Acesso em 21 out. 2014.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Editora Max Limonad, 1986.
[1] Para mais ver: http://www.academia.edu/23903032/Tropicuir._Re_exist%C3%AAncias_politicas_nas_a%C3%A7%C3%B5es_perform%C3%A1ticas_de_corpos_transviados_no_Rio_de_Janeiro
[2] Me aproprio aqui do termo “transviado” usado por Berenice Bento para designar estudos/ativismos transviados, e que se aproxima do significado do termo “queer”, tornando-o inteligível no contexto brasileiro. Uso o termo para me referir ao grupo de bichas, sapatas e trans. No dicionário, o termo transviado tem o seguinte significado: s.m. Desviado; aquele que se transviou; quem se afastou dos bons costumes. adj. Desencaminhado; que se perdeu do caminho; que se transviou; que está perdido. Que se opõe aos padrões comportamentais preestabelecidos ou vigentes. Figurado. Vagabundo; que vive a vagar sem rumo certo. (Etm. Part. de transviar) Para mais, ver: http://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/download/61/pdf.
[3] Disponível em: <http://iconoclastia.org/2013/06/10/Indianarae-siqueira-a-trans-que-pode-mudar-a-lei-brasileira/> Acessado em 17 março 2016.
[4] A ida à justiça foi filmada e pode ser assistida aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Bew-QGZJXDg
[5] Segundo o dicionário de língua portuguesa Dicio, “fenótipo” é definido por: s.m. Genético. Reunião das características particulares ao indivíduo que podem ser visíveis ou detectáveis; manifestação perceptível do genótipo. Genética. Conjunto das particularidades que caracterizam uma bactéria ou um vírus. (Etm. fen(o) + tipo)
[6] Texto publicado na rede social Facebook:
<https://www.facebook.com/indi.siqueira/photos/a.420518144799666.1073741828.419264891591658/434035543447926/?type=3&theater> Acesso em 10 de out. 2015